quinta-feira, 7 de novembro de 2013


O sapateiro, o banco e o saxofone (Rui Agostinho)

Parece que vejo ainda,
Sentado em seu banquinho rude,
Aquele velho amigo falante,
Que contava segredos à miúde.

Da sua preocupação ao fazer sapatos,
Falava com muito esmero,
Hoje é uma arte, muito esquecida,
Pelas pessoas do mundo inteiro.

Olhar fixo no trabalho,
Unindo palmilha e couro,
A Rua 19 ao fundo, vitrine aberta,
Paisagem, seu mundo imediato.

Cola e sola, martelo e taxa,
Mãos calejadas, porém ágeis
Tinta preta na lateral da sola,
No acabamento um fino trato.

Salto verniz e muito cuidado,
Com toda atenção ao perguntado
Mas sem nunca deixar de lado,
A eficiência do seu trabalho.

Eu questionava e buscava insatisfeito,
Respostas as minhas curiosidades de criança,
Como se abraçasse uma enciclopédia humana
Cheia de conhecimentos extras.

Por que isso por que aquilo,
O que é forma, o que é taxinha?
Com cabeça, sem cabeça
Por que o alicate puxa o couro sempre na beiradinha?.

Perguntava até de onde é que vinha
A material por ele usado,
Quem fornecia, quem fabricava,
Quem comprava e quem, pagava.

Lá para o fim da tarde, depois de muita pergunta,
Tinha a parada estratégica, de quinze a vinte minutos,
Era a parte que mais me agradava, hora da comidinha.
Uma espécie de ritual sagrado, o cheiro bom vinha lá da cozinha,

Era nessa hora que D. Selma alegre trazia
Canecas de café quentinho com biscoitos maizena
Pro Seu Leone e pra mim, é óbvio,
Uma espécie de prêmio diário pelo seu trabalho,

Mas que pensa que tudo parava por aí, estava enganado!,
Vez por outra e quando se aproximava o Carnaval,
O banquinho virava palco de grandes sucessos musicais,
Pois "Seu Leone", velho sapateiro, em músico se transformava.

Trocava o fio da faca afiada e o couro,
Pelos registros do seu saxofone,
Instrumento bonito e sonoro,
Que de tão polido e brilhante , até parecia de ouro.

E ensaiava pro Carnaval, que chegava
As marchinhas que guardara o tempo todo.
No fim da tarde eu saia, satisfeito e faceiro.
Cantarolando as canções tocadas pelo velho sapateiro

“Alalaô ô ô ô ô”,
Mas que calor ô ô ô ô ô ô !
“Eu sou o pirata da perna de pau,
Do olho de vidro, da cara de mau.

"Colombina onde vai você ?
Eu vou dançar o iê iê iê !"
"Êh êh êh êh êh, índio quer apito,
Se não der pau vai comer".

Mas da verdade eu nunca me esqueço,
A arte da música penetrou em minhas veias
Através deste homem simples e correto,
Misto de sapateiro e músico, da vida, um arquiteto.

Da sua arte no couro e sua vertente musical
Provavelmente, jamais esquecerei
Sem engano, convicto da sua importância,
Pra mim e pra toda sua família

Relembro e o coloco pra sempre,
No lugar mais feliz da minha infância,
Senhor de seus dois ofícios,
Sapateiro e músico, um soprador de esperanças !


Dedico esses versos a seus filhos: Leonir (in memorian) Tânia, Luiz Carlos, Kátia, Márcia e Mônica. Todos Patrocínio !
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